sábado, 30 de abril de 2011

Rainha Elizabeth II é descendente do Profeta Muhammed

Esta postagem é a tradução de um pequeno comentário que o Professor Juan Cole fez em seu website (Informed Comment) sobre uma materia publica no United Press International em 1986 sobre as ligações sanguíneas da família real britânica - que recentemente recebeu uma nova integrante, na ocasiãodo casamento do principe William - com o Profeta Muhammed, através de seu neto Hussein. Esta é mais uma grata surpresa que enfraquece as bases ideológicas do suposto "Choque de Civilizações" e nos revela como a monarquia européia é tão heterogênia, em suas raízes genealógicas.
Radamés Rodrigues

A Rainha Elizabeth II é descendente do Profeta Muhammed

 Por Profº Juan Cole
A Rainha Elizabeth II
Fiquei surpreso que os escritores de comentários no Salon.com, não sabiam da informação a seguir. é do conhecimento geral de todos os interessados em genealogia .
Eu sei que é difícil para as pessoas engajadas em uma dura dicotomia entre Oriente/ Ocidente para imaginar que o ícone da  civilização ocidental, a família real britânica, tem antecedentes árabes muçulmanos (juntamente com uma série de outras nacionalidades é claro).
O  Grande Mediterrâneo tem misturado todos ao longo de milênios. A maioria dos sicilianos (ou seja, a maioria dos ítalo-americanos) também tem antepassados ​​árabes muçulmanos. Ele funciona no sentido inverso, também. É óbvio que um monte de egípcios, libaneses e jordanianos tem descendência dos cruzados cristãos da Europa.
Isto significa apenas que os ancestrais de Hussein (ou da família Hussein, muito respeitada no mundo árabe) são mais comuns entre os europeus e os americanos do que se pensa. Elizabeth II não pode ser descendente do profeta Maomé sem ser também descente de seu neto, o original Husayn/ Hussein, uma vez que esta é a linha de descendência dos Sayyids.

Aqui segue a matéria de 10 de outubro de 1986 na sua versão original em inglês:


United Press International
October 10, 1986
MOSLEMS IN BUCKINGHAM PALACE

"Mixed in with Queen Elizabeth’s blue blood is the blood of the Moslem prophet Mohammed, according to Burke’s Peerage, the geneological guide to royalty. The relation came out when Harold B. Brooks-Baker, publishing director of Burke’s, wrote Prime Minister Margaret Thatcher to ask for better security for the royal family. ”The royal family’s direct descent from the prophet Mohammed cannot be relied upon to protect the royal family forever from Moslem terrorists,” he said. Probably realizing the connection would be a surprise to many, he added, ”It is little known by the British people that the blood of Mohammed flows in the veins of the queen. However, all Moslem religious leaders are proud of this fact.”
Brooks-Baker said the British royal family is descended from Mohammed through the Arab kings of Seville, who once ruled Spain. By marriage, their blood passed to the European kings of Portugal and Castille, and through them to England’s 15th century King Edward IV. ‘"

E aqui seguem algumas fotos do Principe Charles, o herdeiro direto na sucessão ao trono da Inglaterra:




Rufinka: Canção do folclore búlgaro sobre uma morte na primavera

Este pequeno post, é um dos primeiros onde exploro (mesmo que extremamente superficial) meu objeto de estudo (O Islam na Europa, principalmente pela ótica cultural). Antes havia apenas postado uma nota sobre um concurso que elege as muçulmanas mais influentes do velho continente e um artigo de El-Hajj Abdassamad Clarke, o Imam da mesquita de Norwich. Esta pequena postagem traduzida e adaptada do blog "Maya's corner" fala sobre uma canção de amor do folclore bulgaro que foi criado pela comunidade muçulmana da Bulgaria, esta comunidade recebe o nome de Pomak, apesar de minoritarios, esta canção acabou sendo incorporada ao folclore bulgaro nacional. Eu creio ser este post muito importante para ilustrar uma face do Islam que o ocidente teima em desconhecer, a pureza póetica contida no sistema de artes islâmica (principalmente na literatura e poesia) tornam irracionais qualquer tentativa de qualificar os problemas atuais no mundo islâmico e/ou da falha diplomatica entre o mundo islâmico e o ocidente como um "choque de civilizações".

Radamés Rodrigues




Rufinka Bolna Legnala: Canção do folclore búlgaro sobre uma morte na primavera

Por Maya Markova


Uma das mais conhecidas e amadas canções do folclore búlgaro é Rufinka Bolna Legnala (Rufinka esta deitada doente) criada aproximadamente entre 150 à 200 anos atrás nas montanhas de Rhodopa (inclusive, como outras canções da região, esta também é muito difícil de se declamar). Esta canção foi criada pelos muçulmanos búlgaros, conhecidos etnicamente como pomak, e ao que tudo indica esta canção foi o único elemento de sua cultura que foi incorporado a cultura popular búlgara. A história dessa canção é a seguinte, Rufie (informalmente Rufinka) foi uma personagem real, uma moça de boa família. Por volta dos 20 anos e ainda sem ter contraído matrimonio ela sucumbi vítima de uma doença progressiva e fatal, provavelmente tuberculose. Antes dela morrer, perguntaram-lhe do que ela mais se lamentava, de seu vestido de casamento (o qual nunca iria usar) ou do mundo. A Rufie (personagem histórica)  teria respondido "O vestido, porque eu nunca vou usa-lo". No entanto, a personagem da canção da uma resposta diferente, veja abaixo.

RUFINKA BOLNA LEGNALA - RUFINKA ESTA DEITADA DOENTE

Rufinka bolna legnala - Rufinka estava deitada doente
Na visokana planina, - Lá no alto da montanha,
Nikoĭ do neya nemashe  - Não Havia ninguém ao seu lado
Sal stara i maĭchitsa - Somente sua velha mãe
Tya si Rufinki dumashe: - Ela perguntou a Rufinka:
Rufinko, moya doshtero, - Rufinka, minha querida filha,
Mila li ti e rubana, - Você se lamenta pelo seu vestido de noiva,
Rubana oshte libeno? - Seu vestido e seu amado?
Maĭchinko, mila i draga, - Minha querida, minha querida mãe,
Ne mi e milo lyubeno, - Não me lamento pelo meu vestido,
Am mi e mila din'osa, - Me lamento pelo mundo,
Che sa e prolet puknala, - Porque a primavera esta chegando agora,
Vsichko ot zemya izliza, - Tudo esta saindo da terra,
Pŭk ya shte v zemya da vleza. - E eu entrarei na terra,
Idi mi, maĭcho, porukaĭ mizhova Fatma da doĭde, - Mãe, chame Fatma Mizhova,
Da si i pridam, maĭchinko, moeno libe da vodi, - Deixe ela entrar, e eu vou dizer-lhe para casar com o meu amado,
Moena ruba da nosi... - E pegar o meu vestido de casamento...

A Canção em círilico:

РУФИНКА БОЛНА ЛЕГНАЛА

Руфинка болна легнала
на високана планина,
никой до нея немаше
сал стара и майчица.
Тя си Руфинки думаше:
- Руфинко, моя дощеро,
мила ли ти е рубана,
рубана още либено?
- Майчинко, мила и драга,
не ми е мило любено,
ам ми е мила диньоса,
че са е пролет пукнала,
всичко от земя излиза,
пък я ще в земя да влеза.
Иди ми, майчо, порукай
мижова Фатма да дойде,
да си и придам, майчинко,
моено либе да води,
моена руба да носи....

domingo, 17 de abril de 2011

Série Biografias - Ali Ramiteni

Este, se Deus quiser, será uma série de postagens do blog exclusivamente dedicada as biografias de Shahabas (companheiros do Profeta Muhammad (s.a.a.s)), e dos sábios do Islam. Para começar, publico essa biografia de um dos discipulos do grande mestre Mahmoud Faghnawi, o mestre Ali Ramiteli nascido no que conhecemos hoje como Uzbequistão.

Ali Ramiteni

 
Ele tinha estatura mediana, com uma face agradável. Ele foi bem construído. Ele era um tecelão que preferia uma vida humilde. Ele gostava de estar com as pessoas comuns. No caminho Khawajagan da tariqa naqshbandi, ele foi chamado “Azizan”. Ele foi um santo completo que realizou maravilhas e tinha um status espiritual.
O décimo terceiro anel da cadeia dourada, Ali Ramiteni, conhecido como "Azizan", foi o segundo califa de Mahmud Faghnawi. Ele é o chefe do caminho Khawajagan que leva ao Shah Naqshbandi. Ele nasceu em Ramiten. Ramiten era uma grande cidade a 11 km de Bukhara. Foi lá que Ali Ramiteni foi treinado. Ele participou de palestras com eruditos do seu tempo. Ele foi também um tecelão. Ele foi contemporâneo de Sheikh Rukneddin Aluddevle Simnani e Seyyid Ata, que eram descendentes de Ahmed Yesevi. Depois de familiarizar-se com Mahmud Faghnawi, ele passou a segui-lo. O Nefehat e Reshehat narrou os eventos que ocorreram entre eles como histórias épicas.
Faghnawi, em seu leito de morte, confiou a Ali Ramiteni o direcionamento de seus irmãos na tariqa. Foi narrado que Ramiteni viveu uma longa vida e que tinha muitos murides (discípulos). Ele morreu em 721H/1321 d.C. seu tumulo é em Ramiten acerca de 40 km da aldeia de Incirbag, em Bukhara. Embora Cami, em sua Nefehat, diz que Mevlana Jalaludin Rumi referiou-se a Ali Ramiteni como nessac, ou seja, um tecelão, em uma de suas gazals, parece cronologicamente impossível, pois Mevlana morrerá cerca de quarenta anos (673H/1273d.C.) antes Ramiteni (721H/1321d.C.). Embora na tradução do Reshehat, Cami, que escreveu o Nefehat, é apresentado como filho de Ali Ramiteni, isto é errado.
Foi narrado que Ramiteni tinha um bom relacionamento com o Shah de Harezm. A história é a seguinte: Ao receber um sinal espiritual Ramiteni decidiu imigrar para Harezm. Quando ele chegou à entrada da cidade, ele enviou dois murides ao Shah para pedir permissão para ficarem na cidade, e ele disse: “Vão ao Shah. Digam que um pobre tecelão chegou a cidade e pede permissão para ficar. Se ele aceitar, o tecelão entrará; se não, o tecelão retornará. Se ele permitir, o tecelão pede um documento afirmando isso.”
Os dervixes realizaram seu pedido da carta. O Shah, que não estava acostumado a receber tais solicitações, num primeiro momento ficou surpreso. Então, ele concedeu o documento solicitado. Após os dervixes trouxerem o documento para o sheikh, ele entrou Harezm e se estabeleceu em uma casa em um bairro pobre. Depois de se mudar para a cidade, ele foi para o bazar aos empregados diaristas e disse-lhes: "Sua tarefa é executar imediatamente wudu (ablução) e participar de nossas palestras aqui até o anoitecer, e você será pago no momento da partida" Os trabalhadores aceitaram de bom grado esta oferta e gostavam de aderir às palestras. Ninguém queria abandonar as aulas depois que eles começaram a participar. A cada dia que passava, a casa do sheikh foi ficando cada vez mais lotada com a quantidade crescente de dervixes. Com a propagação da fama do sheikh em torno de Harezm e pessoas se reunindo ao redor dele, algumas pessoas invejosas queixaram-se para o Shah. Eles disseram: "Se esta situação continuar, em breve ele será Shah e você vai perder seu trono." O Shah de Harezm imediatamente ordenou que Ramiteni deixa-se Harezm. Mas Ramiteni respondeu: "Nós temos um documento que nos permite ficar na cidade e é assinado pelo Shah. Se o Shah nega sua assinatura, então, vamos deixar a cidade". O Shah visitou o sheikh para evitar tornar-se tão insignificante a ponto de negar sua própria assinatura. Quando confrontado pela grandeza do sheikh, o Shah foi atraído para ele e se juntou ao posto de seus seguidores.
O encontro com Simnani
O escritor do Reshehat nos informou que Ramiteni correspondeu-se com Alauddevle Simnani; diz-nos que Simnani enviou um emissário para Ramiteni com três perguntas. Estas são as perguntas (e suas respectivas respostas) que foram enviadas:
1ª Pergunta: ambos estamos a serviço de todos. No que diz respeito ao tratamento das pessoas, você é, sem exercer a si mesmo, satisfeito com o que você tem à mão. Entretanto, embora nos esforcemos, as pessoas te amam mais do que a nós. Qual é a razão para isso?
1ª Resposta: Há muitos que servem esperando gratidão em troca de seus serviços. Não são poucos os que são gratos a servir as pessoas. Se você ver as pessoas que servem como um dom e ser grato àqueles a quem você está servindo, então todo mundo gosta de você e reduz-se o número de queixas.
2ª Pergunta: Nós ouvimos que você foi treinado por Khidr. Como isso aconteceu?
2ª Resposta: Há alguns servos de Allah que o amam e Khidr os ama.
3ª Pergunta: Ouvimos dizer que você abandonou o zikr[1]hafi[2] e estava realizando o zikr jahri[3]? Qual a razão para isso?
3ª Resposta: Ouvimos que você praticava o zikr hafi. No entanto, se temos sido capazes de ouvir isso, então o seu não é hafi, pois a peculiaridade do zikr hafi é de que ninguém pode ouvi-lo. Uma vez que ambos os zikr estão sendo ouvidos e conhecidos, então eles são os mesmos. Na verdade, nesta fase, o zikr hafi esta mais perto de hipocrisia do que o zikr jahri.
Outra vez, ele explicou a razão do porque que ele preferia o zikr jahri. “O Profeta de Allah (que a paz e as bênçãos estejam com ele) nos ordenou anunciar as palavras de unidade (La ilaha illa Allah) no nosso ultimo suspiro isto é chamado halet-i nez. Tasawwuf (Sufismo) significa considerar cada respiração como se fosse o ultimo suspiro. Por esta razão, não há problema em executar o zikr jahri, certamente, este caminho é melhor”.
Um dia, Bedreddin Meydani perguntou:
“O verso ‘Ó crentes, mencionai frequentemente Allah’ (Alcorão 33:41[4]) refere-se ao zikr jahri?” Ali Ramiteli respondeu: “Isto é jahri para aprendizes e hafi para especialistas. Isto é com a língua no principio e com o coração ao final.”
Ali Ramiteni via a fé como um assunto de entusiasmo e emoção. Quando ele foi perguntado “O que é fé?” ele respondia: “A fé é fazer um esforço e então alcançá-lo. É fazer um esforço sobre o masiva (tudo exceto Allah) e alcançar a Verdade (Allah).
Ali Ramiteni foi cuidadoso sobre "Vera", que é descrito pelos sufis como a verificação da conformidade das coisas que entram pela boca e aquelas que saem da boca com Allah e Seu Profeta. Ele dizia: "Tome cuidado com duas coisas: aqueles que entram em sua boca enquanto come, e aqueles que saem de sua boca enquanto fala."
Ele dizia que existe tanto uma indicação e boas-novas no verso "Ó crentes, voltai, sinceramente arrependidos a Allah" (Alcorão: 66:8[5]). A indicação é de arrependimento, as boas-novas são para a aceitação do arrependimento, se o arrependimento não fosse aceito, não teria sido ordenado.
Ali Ramiteni considerou que estar confiante sobre as boas obras era inaceitável, e que ele iria dizer que todos devem ser ligados as boas obras e executá-las corretamente, enquanto ainda estivessem vendo a si mesmo suas boas obras estavam incompletas, mas deveriam continuar a praticar boas obras.
Ele também disse que aqueles que lidam com a formação da comunidade devem reconhecer as habilidades e as deficiências dos alunos, como um domador de leões. O Murshid[6] deve agir da mesma forma como o domador de leões, ou seja, de acordo com as propriedades do animal/pessoa que está sendo treinado. Se o Murshid não faz isso não pode ser bem sucedido.
Em outro caso, comparando o Murshid com um treinador de pássaros, Ali Ramiteni disse: "Um treinador deve saber a quantidade de alimento que o pássaro precisa e quanto eles podem segurar. Alimentação excessiva ou deficiente é prejudicial. O Murshid devem nortear o murides no zikr e mortificação (dos desejos mundanos) que diz respeito à capacidade dos murídes. A instrução precisa nem ser deficiente, nem excessiva, porque então ela será ou não suficiente ou excessiva para a murides. "
Ali Ramiteni sabia que no caminho para chegar à Verdade (Allah) deve-se entrar um coração. Para wuslat (união com O Amado), os murides devem ser submetidos a muitas dificuldades.
No entanto, existe outra forma de wuslat que permite a alma chegar com rapidez e precisão no destino. Este é entrar em um coração que se dedica a Allah. Esses corações são nazargah-al'ilahi. Tais pessoas são amantes de Allah, que levam as pessoas à verdade. É necessário entrar nestes corações, amando e sendo humilde na frente deles.
Um dia, o sheikh Rukneddin perguntou a Ramiteni: "Em Bezm-i elest, foi quando o discurso divino ‘Não é verdade que sou o Vosso Senhor? ’ (Alcorão: 7/172) fora entregue, as almas.” Ramiteli afirmou, respondendo: "Sim. No entanto, no Dia do Julgamento, ninguém será capaz de responder à pergunta: ‘Há quem, pertencera, nesse dia o reino?’ (Alcorão: 40/16) Por quê? "
Ramiteni deu a seguinte resposta: "Bezm-i elest é o dia em que a Sharia[7] foi oferecida as almas. Na Sharia é necessário falar. Mas, no Dia do Juízo Final, a oferta não será mais válida. Por esta razão, não haverá fala naquele dia. E Allah, Todo-Poderoso vai responder a essa pergunta.”
Ramiteni apresenta também alguns poemas do Reshehat além da narração de muitas obras de reflexão.

Altinoluk
2008 – Jan/Fev. Artigo nº 9 pag. 44

[1] Relembrar Allah através da recitação de Seus Santos Nomes.
[2] Zikr silencioso e secreto.
[3] Zikr Vocal e aberto.
[4] Para tal tradução do significado usei a contida em HAYEK, Samir E. Alcorão Sagrado: Os significados dos versículos do Alcorão Sagrado.
[5] Idem.
[6] O guia espiritual e treinador.
[7] Lei Divina segundo a teologia islâmica.

sábado, 16 de abril de 2011

O Caminho de Amor Islâmico

 Este foi um dos primeiros textos que eu li sobre o sufismo (a ciência islâmica do aperfeiçoamento do cárater) e ele me ajudou muito, pois me mostrou a direção até que eu pudesse conhecer o querido Sheikh Muhammad Ragip al-Jerrahi. Os dois encontros que tivemos na tekke da Penha mudaram o meu modo de ver as coisas e hoje graças a Deus tenho uma visão mais completa e orgânica sobre a religião do Islam. Não poderia deixar de repostar tão valioso material. 

O Caminho de Amor Islâmico
 
Na busca da união do exterior e interior, os dervixes buscam, no sufismo, o caminho do amor por meio de práticas místicas, sintonizando corpo e coração ao lembrar de Deus
por Laila Ayoub
caminho místico encontrado por alguns muçulmanos para aproximar a realidade interior daquela pregada pela shariah, o conjunto das leis islâmicas: essa seria uma possível primeira e sintética explicação do sufismo. Mas o sufismo não se propõe a ser explicado, senão vivido. E é com o intuito de experenciá-lo que o dervixe, nome dado ao iniciado praticante, vale-se da orientação de um mestre, pertencente a uma ordem. Existem pelo menos 800 ordens sufis, hoje, no mundo. Há cerca de 300 anos, eram mais de três mil, segundo o sheikh Ismail Çimen, da Ordem Halveti Jerrahi.

Um homem rezando o "tasbi", colar de contas muçulmano, que equivale ao rosário cristão
Fundada pelo Pir Nureddin al-Jerrahi, no século XVII, em Istambul, essa ordem possui seguidores em países como os EUA, Chile e Argentina. Já no Brasil, o sufismo é pouco conhecido e praticado. A ordem Jerrahi conta hoje, em São Paulo, com duas tekkés, isto é, espaços para o culto.
Uma delas, em Cotia, onde o sheikh Ismail Çimen reúne um grupo de seis dervixes. Nascido em Istambul, na Turquia, o sheikh mora no Brasil há 11 anos, mas recebeu a autorização para ser mestre há dois anos e meio. Músico, o sheikh Çimen toca ney, a flauta de junco da música sufi, e o alaúde oriental, um instrumento de cordas também utilizado nas cerimônias.
Ao contrário do que se possa pensar, não são apenas árabes, turcos ou nascidos em famílias muçulmanas os que abraçam o sufismo. O próprio sheikh Muhammad Ragip, da tekké da Penha, em São Paulo, é um exemplo de ingresso no Islã a partir do sufismo. Apresentado à religião na Turquia, sheikh Ragip é quem conduz as reuniões semanais às quintas-feiras e domingos. Quanto ao número de freqüentadores, sheikh Ragip afirma ter conhecido desde ordens com três pessoas até milhares. Em São Paulo há também, por exemplo, a ordem Chazulya Iachrotia, que se reúne em São Bernardo do Campo e conta com, pelo menos, 350 pessoas.

Zikr: lembrar de Deus em todos os momentos
Nas paredes da tekké da tarika Halveti Jerrahi, na Penha, pode-se ler, em quadros versículos, do Alcorão e hadiths (dizeres do profeta Mohamed) em árabe. Há ainda fotos de peregrinos em Meca e dervixes dançarinos na Turquia. No encontro, que começou com seis pessoas num final de tarde de quinta-feira, ocorreu primeiro a salat (reza). Repetições de versículos do Alcorão e genuflexões, tudo conforme as normas seguidas por todos os muçulmanos, sufis ou não. A diferença, contudo, é o intuito: a busca interior de um caminho de amor. “O muçulmano, quando faz a oração, faz porque Deus mandou fazer.

Rodopio Dervixe, pintura de Pamela Rigsby de 1996
Os sufis o fazem com certa sabedoria e consciência”, argumenta o sheikh Çimen. Após a oração, acontece o zikr. O termo, que significa lembrança, rememoração, designa a parte da cerimônia na qual, através da repetição dos atributos e nomes divinos de Alá, presentes no Alcorão, ele é lembrado, invocado. Também são entoados seguidamente “La ilaha ill-Allah”, que significa “Não há divindade a não ser A Divindade” e hinos religiosos. O grupo, no zikr, é dividido em três: o mestre, que administra o grupo; os dervixes e os músicos.
Esses dividem-se entre os que tocam os instrumentos de sopro, como a ney, os que tocam os de percussão, como o kanun e o bandir, e os que cantam. A música é tida como fundamental para os sufis. “Ela é entendida como um instrumento para alimentar o amor na prática”, diz o sheikh Çimen. São vários os rituais possíveis na cerimônia dervixe. A Ordem Mehlevi, por exemplo, fundada por Rumi, tem a conhecida samma, na qual são feitos movimentos circulares com uma mão para cima e uma para baixo, que representa o dervixe sendo o instrumento de Deus, recebendo sua benção e transmitindo-a para esse mundo.

Música é tida como fundamental para os sufis
A base da movimentação é para ensinar o corpo a sintonizar-se ao coração. No zikr da tekké da Penha, os dervixes, com instrumentos ou apenas cantando, são orientados pelo mestre, que puxa o coro e os movimentos com a cabeça, ora circulares ora de um lado para o outro. Há dois círculos separados, um de homens e um de mulheres que, depois do zikr, saboreiam um simples e leve jantar – uma sopa de legumes, esse dia. Logo em seguida há outra reza e, finalmente, novo zikr, dessa vez acompanhado por um instrumento percussivo e a ney.

O sufismo
Há várias hipóteses quanto à etimologia da palavra sufi. O termo suf (lã, em árabe), pode ser uma das origens, aludindo aos mantos de lã que vestiam os primeiros sufis. O sheik Çimen, contudo, refuta a justificativa do traje e defende duas outras possibilidades. A primeira, relacionada à expressão ahl al-suffah (“os do sofá”), que designa um grupo de companheiros do profeta que ficavam em sofás, apartados na mesquita de Medina, dedicados à devoção. A segunda, remete à raiz verbal árabe safá, que significa purificar-se, e remete ao entendimento do sufismo como um caminho de pureza.

A submissão do ego guiada pelo mestre
Existe uma hadith que diz que “Aquele que conhece a si mesmo conhece ao seu senhor”. O “a si mesmo” da frase, explica o sheikh Ismail Çimen, remete ao seu ego e os perigos que ele pode representar se não for educado. Assim como Islã quer dizer submissão, o sufismo busca a correção do ego para que este seja um instrumento de satisfação e ligação com o divino, acrescenta o religioso. Para os sufis, a vida do ser humano se resume a uma luta entre o caos e a harmonia, o múltiplo e o único, o egoísmo e o amor.

Mesquita da Imperatriz de Isfahan - Irã
Para ajudar a disciplinar o ego, o dervixe conta com a ajuda do mestre da ordem, o sheikh (nome que significa, na etimologia, ancião). O sheikh é um vetor orientado na direção de Deus, que precisa estar em conexão com Ele e receber certa forma de inspiração. Além disso, é imprescindível o contato com o fundador de sua escola e o estudo por vários anos nela, além de passar por um teste. O teste de iniciação também existe para o dervixe. Não se trata, entretanto, de regras pré-definidas, mas do envio de um sinal que será interpretado pelo mestre.
Pode até ser um sonho, de maneira que o dervixe deve contar todos os seus para seu mestre. O murshid (termo que significa guia para o bom caminho) identifica a capacidade que a pessoa tem de amar e o aspirante a dervixe, de sentir-se confortável com o grupo. Existe, contudo, a possibilidade de uma pessoa não ser iniciada e até de o murshid receber a recomendação de não iniciá-la. Nem todo murshid é um pir, mas todo pir é um murshid.
Pir é o fundador de uma ordem (ou tariqa), aquele a quem o sufismo atribui o ápice do desenvolvimento espiritual no caminho do homem perfeito. O pir atingiu tamanho grau de fusão com o Criador que conseguiu chegar ao êxtase, um estado de consciência ampliada. É o que os sufis chamam de “morrer antes de morrer” para, assim, poder voltar e cumprir a missão de guiar as pessoas pelos estágios de ampliação da consciência.

História e clandestinidade
Os sheiks acreditam que, embora não se apresentasse ainda com esse nome, o sufismo existe desde o profeta Mohamed, que foi o primeiro mestre, assim como foram sufis os quatro califas que o seguiram. Contudo, argumenta-se que as ordens começaram a se mostrar como uma reação ao afastamento da mensagem original do Islã, frente à corrupção que se estendia entre as classes dirigentes. Ordens famosas, como a dos dervixes Mehlevi e sua dança cósmica circular, foram extintas.
Segundo o sheikh Çimen, os Mehlevi, assim como todas as ordens na Turquia, foram proibidos de fazerem seus cultos, quando Kemal Atatürk proclamou a república em 1923. Atatürk baseava a proibição no argumento do ingresso na modernidade. Até 1960, portanto, as ordens existiram secretamente e só sobreviveram as que não necessitassem da música em seu cerimonial em volumes muito audíveis. Devido às alterações do ritual de algumas, os sufis alegam que houve a perda do baraka, isto é, o vínculo espiritual que se estabelece a partir do momento que se pratica, que protege e conduz o fiel. Hoje, contudo, o samma é tido até como dança folclórica, apresentada aos turistas, embora sem o baraka.

Orientalismo sem baraka, um equívoco
O sufismo nunca foi possível sem o Islã. O sheikh Muhammad Ragip explica que essa distorção é fruto da onda orientalista de meados do século 20 e de iniciados que vieram para a América difundir o cerimonial, sem mencionar ou exigir o Islã como base. Os mestres religiosos argumentam, entretanto, que todos os pensadores sufis foram muçulmanos.
Além disso, “toda a ordem sufi tem uma silsila, espécie de mapeamento das iniciações que remontam sempre ao profeta”, lembra o sheikh Ragip. Segundo ele, silsila também identificaria a manutenção do baraka ao longo dos anos. “A prática espiritual sem baraka é nada”. E completa: “Pode até desenvolver concentração e disciplina, mas isso é psicológico e não espiritual”.

O que se pode expressar com palavras não é sufismo
Os sufis desejam uma plena conexão com Deus e, para isso, não acreditam no racional para explicar tudo. Ser sufi é acreditar não apenas no que se vê, mas buscar o contato com o transcendente e metafísico. E para atingi-lo, não é suficiente apenas ler os principais poetas sufis, como Rumi e Attar, donos de célebres obras como “Fihi ma fihi
– O livro do interior” e “Linguagem dos Pássaros”, respectivamente, ou ainda de Omar Khayam, Sa’adi, ‘Attar e Hafiz. A prática é essencial. Sheikh Çimen sintetiza a partir de uma metáfora: “A água não tem um gosto que dê para explicar, o vento não tem cor. Não dá para explicar o amor. O sufismo não é um caminho de informação, mas de experiência”.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Revolta do Malês de 1835


Para  quebrar um pouco a hegemonia de grandes estudioso aqui no blog, eu estou postando esse artigo que originalmente foi escrito como um trabalho para a disciplina de História do Brasil II. Tento neste artigo correlacionar a revolta escrava com uma situação peculiar ao período histórico que aqueles escravos viveram, ou seja, a chamada era das "Jihad's Nacionais", que perduraram por todo o século XIX em boa parte do mundo islâmico e foi ocasionada principalmente pelo enfraquecimento do poder otomano, a sequente perda de territórios para as potências européias, destacadamente Inglaterra e França e o crescimento demografico de comunidades islâmicas, principalmente no Extremo Oriente (notadamente a crição de Estados Muçulmanos apoiados pela irmandade naqshbandi na China).



A Revolta dos Malês de 1835: O Episódio brasileiro na era das Jihad’s


Por Radamés Rodrigues *
O Presente artigo pretende analisar a revolta dos malês como uma extensão das “jihad’s” empregadas no Sudão Central por reformadores muçulmanos como Usman Dan Fódio, além de analisar a origem étnica e cultural desses escravos para que se possa compreender como uma revolta de caráter tão particular transformou-se numa das maiores revoltas escravas das Américas.


A Revolta dos Malês.

Na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, uma patrulha de milicianos abordaram o cidadão Domingos Marinho de Sá, que se encontrava na janela de sua residência, um sobrado de dois andares na ladeira da praça[1], em Salvador, Bahia. No sobrado havia também estabelecido residência o senhor Manoel Calafate, um dos lideres da revolta. No sótão dessa mesma residência um grupo de escravos, comemoravam uma celebração muçulmana referente ao ramadã – o mês sagrado do calendário muçulmano – tal celebração era a Laylat al-Qadr ou a Noite da gloria – uma das dez ultimas noites do mês de Ramada, simboliza o inicio da revelação do alcorão –  além de acertarem os últimos preparativos para o que ficaria conhecida na história do Brasil como a Revolta dos Mâles.
Esses manifestantes saíram armados com paus e espadas quando perceberam que a policia estava no local, deflagrando o primeiro confronto dessa revolta que assolaria grande parte do perímetro urbano de Salvador.
A primeira vista, este fato parece pouco importante, dado que revoltas e rebeliões escravas ocorriam com certa freqüência e com características bastante peculiares. Porém, um dos dados que mais impressiona é o apontado por João José Reis, quanto ao numero de manifestantes, segundo ele, os 600 manifestantes identificados na época pelas autoridades nos dias atuais representaria algo em torno de 24 mil pessoas[2]. José Reis continua em seu livro dizendo:

Centenas de africanos participaram, cerca de 70 morreram e mais de 500, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com penas de morte, prisão, açoites e deportações. Se uma rebelião das mesmas proporções acontecesse hoje(1985) em Salvador, com seus 1 milhão e 500 mil habitantes, resultaria na punição de cerca de 12.000 pessoas.[3]

Salvador, Bahia em meados do século XIX.
Esta pequena passagem da uma idéia do que foi o conflito, mas é preciso entender a sua gênese, e para isto, precisamos saber quem foram os Malês. Podemos por descuido pensarmos que os malês eram um grupo homogêneo, porém, esta linha de pensamento é assaz errônea, tendo em vista a heterogeneidade da própria sociedade baiana. A verdade é que esses escravos vinham de grupos étnicos tão distintos quanto os ewes, os jeje, os iorubanos (aqui conhecidos como nagôs) e outros povos provenientes da Senegâmbia além do povo hauçás.
Esses povos vinham de uma faixa de terra conhecida como Sudão Central ou como os árabes a chamavam Bilad al Sudan, onde importantes estados muçulmanos se estabeleceram a partir do século XV, e no século seguinte os povos do Sudão Central viram o auge do reino Kanem-Bornu, principalmente sob o comando de Idris Aloma que o governou de 1570 até 1619[4]. O reino de Bornu, também, irá desempenhar papel significante na manutenção da ordem entre as nações hauçás que entravam constantemente em conflito. Sob o poder que Bornu impunha a região, havia uma certa proteção contra o mercado escravista, Paul Lovejoy nos mostra que: “Somente no final do século XVIII os escravos foram enviados dessa área para a Costa da Guiné onde embarcariam em direção as Américas, já então, em numero relativamente pequeno.”[5]
Podemos então concluir que os escravos que participaram do levante dos Malês, chegaram ao Brasil já em meados do século XVIII, coincidindo com as jihad’s que os reformadores islâmicos empregaram no Sudão a partir do final do século XVIII. Também é importante ter em mente que enquanto a influencia islâmica se propagava no Sudão, os escravos islamizados continuavam essa tendência nas ruas de Salvador.
O Próprio João José Reis aponta este ímpeto de crescimento que o Islã adquiriu aqui nas primeiras décadas do século XIX. Reis afirma que: “A rebelião aconteceu num momento de expansão do Islã entre os africanos que viviam na Bahia.”[6]. Tal afirmação pode soar um tanto estranha se tratando do Brasil, um país que tem uma distancia cultural acentuada em relação à tradição árabe – islâmica, mas Gilberto Freire, em seu clássico Casa Grande e Senzala, ao falar sobre os sudaneses e sua importância na propagação do Islamismo cita que:

Notou o Abade Étienne que o Islamismo ramificou-se no Brasil em seita poderosa, florescendo no escuro das senzalas. Que da África vieram mestres e pregadores a fim de ensinarem a ler no árabe os livros do Alcorão. Que aqui funcionaram escolas e casas de oração maometanas.[7]

Podemos notar quão arraigado estava o islamismo entre os africanos e como era possível perceber em uma rápida passagem pelo centro de Salvador, escravos se comunicando em árabe, ensinando religião a outros. Isto se dava, também pela mobilidade que os escravos tinham e seu livre transito pelas ruas, principalmente os “negros de ganho”, modalidade de escravatura, onde o escravo tinha a liberdade de sair durante o dia para vender determinada mercadoria ou serviço, tendo que retornar ao anoitecer e ceder parte dos ganhos ao seu senhor.
Outro precedente foi o uso da escrita, sob este aspecto Freyre também se manifesta, apontando o caráter erudito dos escravos frente à aguda ignorância nas quais viviam a maioria dos senhores brancos. Freyre afirma que: “È que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior numero de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes.”[8]
O fato é que a própria estrutura de propagação do Islamismo no Sudão Central já nos remete a tal situação. Não há em muitos casos uma tradição literária entre esses povos, logo com a expansão do islã, e seus princípios – como a obrigatoriedade na ritualística muçulmana de se recitar capítulos do alcorão durante as orações – nota-se o grau de influencia realizado pelo islã, na tradição cultural dos povos sudaneses. Podemos notar o impacto da penetração muçulmana na cultura desses povos, a partir do que nos traz Francis Robinson:

O que resta da civilização islâmica, especifica do Sudão, reflecte o papel dos ulamas e do islão em geral na sua configuração. Ali persiste o árabe, língua que os muçulmanos introduziram na região e que foi a primeira que os Sudaneses aprenderam a ler e a escrever. O árabe foi a linguagem da administração, do ensino, da correspondência e da história; e teve também uma grande influencia nas línguas indígenas, especialmente o haúça. O árabe é a língua em que nos chegou os estudos dos eruditos sudaneses [...][9]

Página do Alcorão, em árabe Al Qur'an Al Karim
Isto mostra que o grau de desenvolvimento intelectual entre os escravos era superior ao da maioria dos senhores brancos que muitas vezes precisavam apelar ao capelão ou a um escrivão para redigir uma simples carta. Esta , talvez, tenha sido a maior vantagem dos malês, sob os senhores brancos. É certo que o domínio da escrita ajudou a colocar em pratica os planos dos revoltosos, algo bastante ambicioso, a tomada de Salvador, a morte dos senhores brancos, além de rumarem até o recôncavo para se unirem aos seus irmãos escravos e enfim formar um califado.
Outro importante aspecto é a figura do alufá ou mestre, estes foram os grandes organizadores da revolta, homens com conhecimentos sobre a religião e que atuavam como conselheiros, no contexto da revolta, um dos personagens mais conhecidos era o idoso Pacifico Licutan ou seu nome islâmico Bilãl, um estimado alufá que estava preso, não por suspeitas de conspiração, mas por dividas referentes ao seu antigo senhor. Tal peculiaridade, unida ao fato de que os malês portavam junto a eles amuletos onde haviam inscrições em árabe, passagens do sagrado alcorão e rezas, – pedindo  proteção contra os males desta terra e da outra – mostra que esses muçulmanos eram adeptos da corrente sufista, uma vertente do Islã que era extremamente popular, além de  predominante no Magreb – compreende as regiões do Norte da África – a esse respeito, José Antônio Teófilo Cairus nos revela que: “No Sudão, as antigas irmandades Qadiria e Shadilia foram assimiladas pelos clãs locais. O relacionamento entre o sheykh e seus seguidores era direto e pessoal, sem qualquer outra organização ou procedimento mais elaborado.”[10]
A tradição sufista, extremamente arraigada no principio de obediência ao murshid – mestre – vai ser a via mais viável para que estes rebeldes possam se organizar, tendo também em vista que o próprio Usman Dan Fódio foi mestre sufista da tradição Qadiria[11].
Shehu Usman dan Fodio, 1754–1817
Este que fora sem duvida a maior personalidade das jihades na África, Shehu Usman Dan Fódio (1754 – 1817) iniciou uma campanha de reforma moral contra o pseudo-islamismo do rei de Gobir. Homem letrado e considerado alim – erudito – Xeque Usman instruiu-se com o melhor da erudição produzida no mundo muçulmano sem ter abandonado o Sudão, foi discípulo de El-Hadj Djibril e empregou uma guerra santa contra o que ele dizia ser o paganismo. Depois de uma serie de batalhas Xeque Usman vai finalmente em 1809 fundar o Califado de Sokoto.
Estas conexões entre os movimentos jihadistas que brotaram pelos quatro cantos do dar al- salaam – as terras muçulmanas – e os escravos islamizados da Bahia pode ser subsidiada por um dado apontado por Alberto da Costa e Silva. Segundo ele durante todo o século XVI os europeus levaram da costa Atlântica por volta de 1.868.000 escravos[12], muitos deles espólios de guerra que eram trocados por armas e cavalos ou outras mercadorias, quando não vendidos a baixo preço[13].
A investida dos malês durou toda a madrugada daquela noite de 25 de janeiro e só foi ser contida no Quartel em Água de Meninos, onde a cavalaria esmagou o levante, porém, o plano dos malês realmente consistia em atacar o Quartel e de lá rumar em favor dos escravos do Recôncavo Baiano. Seus planos foram então barrados pelas forças de cavalaria que se encontravam no local e impuseram pesadas baixas aos rebeldes, sem levar em consideração os que se atiraram ao mar para tentar escapar a nado e acabaram por se afogar.
Se do ponto de vista militar a revolta foi mal-sucedida, ela não deixou a desejar em organização. A estrutura de aprendizagem que esta diretamente vinculada aos esforços de propagação da religião pelos malês, propiciou um ambiente intelectual favorável ao ensino não só da cultura religiosa, mas da escrita, que era fundamental para a profissão de fé e se manifesta sutilmente na confecção dos amuletos utilizados pelos próprios malês. Ao contrario do que se possa pensar, não eram somente os eruditos no árabe que os confeccionava, mas também os novos aprendizes o que constituía um meio pedagógico dinâmico.[14]
As senzalas rapidamente se converteram em madrassas, – escolas corânicas – mas não somente nisto, os malês se reuniam para as orações diárias e também para celebrações religiosas. As festividades tinham como palco muitas vezes refeições coletivas como o ifhtar – refeição de quebra do jejum no mês de Ramada – entre outras.  João José Reis descreve outra cena do cotidiano dos muçulmanos soteropolitanos, reunidos para congregarem:

Era também à mesa que os malês festejavam suas principais datas religiosas. Destas, pudemos identificar positivamente o Lailat al-Miraj (a ascensão do profeta Maomé ao céu), que teve lugar no final de novembro de 1834, [...] Naquele ano, o dia 26 de Rajab (sétimo mês do calendário islâmico), data da tradicional celebração, caiu exatamente num sábado, 29 de novembro.[15]
 
Podemos então observar que em tais ocasiões, os integrantes do bloco conhecido como malês estavam reunidos. Possivelmente planejando, ou simplesmente congregando em comunidade, e ou, elevando suas preces para o estabelecimento de um califado na Bahia.
Concluímos que o Levante dos Malês, é um fato singular, não somente para que se possa entender mais sobre a escravidão, mas também, e principalmente para que possamos compreender a multi-etnicidade dos escravos e a consciência dos seus anseios e projetos. Este esforço de percepção é importante para que não entremos em discussões errôneas acerca da passividade com que os escravos viam à sua própria condição social. É também de suma importância, percebermos através de pequenas cenas do cotidiano, como, aqueles revoltosos tombados a frente do Quartel de Água de Meninos, tinham uma conexão e por conseqüência uma proximidade com os problemas e paradigmas que enfrentavam os muçulmanos que vivenciaram o reformismo de suas sociedades durante todo o século XIX.

Bibliografia:

CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Rio de Janeiro, 2002. 223 p. disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDetails.aspx?IDFile=149276 . Acessado em: 14/05/2009.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 43.ed Rio de Janeiro: Record, 2001.

KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. 3. ed. rev. e atual Mira-Sintra: Europa-América, 1999.

LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P.137.

REIS, João José. A revolta dos malês em 1835. disponível em: http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf. Acessado em 18/05/2009.

ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996.

SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 2002.



 * Graduado em História pela Universidade do Extremo Sul  Catarinense.
[1] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. p 91.
[2] REIS, João José. A revolta dos malês em 1835. disponível em: http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf . Acessado em: 18/05/2009.
[3] Ibidem. P.7.
[4] ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996. P.97.
[5] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P.126.
[6] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P.137.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 43.ed Rio de Janeiro: Record, 2001. P.367.
[8] Idem. P.357.
[9] ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996. P.99.
[10] CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Rio de Janeiro, 2002. 223 p. disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDetails.aspx?IDFile=149276 . Acessado em: 14/05/2009.
[11] KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. 3. ed. rev. e atual Mira-Sintra: Europa-América, 1999. P. 14.

[12] SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 2002. P. 503.
[13] Idem. P.514.
[14] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P. 129.
[15] Idem. P.132.
 

domingo, 10 de abril de 2011

A vida de Muhammad através da interpretação de seu seguidor filosofo

É com imenso prazer que público esta resenha do coordenador do departamento de linguas orientais da USP, o Prof. Mamede Mustafa Jarouche, que entre outros trabalhos notaveis é tradutor da coletânea de histórias conhecidas como As Mil e Uma Noites. O texto a seguir é uma resenha de uma importante biografia do Profeta Muhammed (conhecido dentro da teologia islâmica como sira), escrito por ninguém menos que Martin Lings. Lings foi um grande estudioso da lingua árabe e cultura islâmica, seus textos (infelizmente, poucos já possuem edição nacional) abordam temas do Islam tradicional, da espiritualidade islâmica (tasawwuf) e assuntos de cunho esotérico (a dimensão interior das religiões que são na verdade a transmutação para o estágio conceitual dos valores que permeiam os atos devocionais) abordados a partir de um aporte teórico que ficou conhecido na filosofia e ciências humanas de modo geral como Sophia Perennis ou perenialismo. Para os interessados em adquirir a obra podem faze-lo no site da editora Attar.
Radamés

Maomé por um fiel do Ocidente

Por Mamede Mustafa Jarouche

 

Conta a tradição muçulmana que o próprio Muhammad (m. 632 d.C.), fundador da religião muçulmana, teria recomendado aos discípulos que se abstivessem de relatos sistemáticos sobre as suas ações. Seu argumento, deveras razoável e ponderado, era o de que, sendo ele um simples ser humano – embora investido de missão profética, segundo a crença da religião que fundou – cometera tanto acertos como, eventualmente, erros, de modo que lhe registrar as ações, conferindo- lhes caráter sagrado, poderia consistir, aos olhos do vulgo, em legitimação de atos nos quais ele porventura houvesse cometido algum equívoco e depois se arrependido.
Lings usa fontes tradicionais sem modismo
A recomendação foi quebrada menos de um século após a sua morte, com registros basicamente divididos em dois gêneros: de um lado, a sira, biografia propriamente dita, que obedece ao formato tradicional das biografias, relatando sistematicamente toda a sua vida, desde a origem e apresentando o claro propósito de fortalecer o moral dos muçulmanos com uma narrativa exemplar que enfatiza justeza e verdade da missão do profeta, bem como as suas façanhas, divinamente inspiradas, em defesa da nova fé; de outro, o hadith, conjunto de relatos sobre ações, ditos e mesmo silêncios do profeta que foram utilizados como uma das fontes da legislação e da jurisprudência islâmicas, ao lado do Alcorão e da sunna, a prática ortodoxa dos primeiros conversos ao islamismo. Nessa linha, o hadith é menos laudatório que a sira, pois obedece a determinações diversas e mais eminentemente pragmáticas, ao passo que a primeira, conquanto pudesse fazer parte dos rituais de adoração, também servia, ocasionalmente, a propósitos mais ornamentais; embora seja natural o interesse pela figura do fundador de sua religião entre os muçulmanos, as inovações no gênero são relativamente escassas, com eventuais compiladores e historiadores retomando o que dissera Ibn Hisham e utilizando as fontes usuais do hadith. Mais modernamente, em especial a partir do século passado, é que começaram, de modo tímido, a espocar novidades aqui e acolá no âmbito do islã.
O pioneiro na vertente da sira (biografia) foi Ibn Ishaq (m. 768 d.C.), cuja obra, pelo visto controversa, se perdeu, tendo sido resgatada e reescrita mais tarde por Ibn Hisham (m. 828 d.C.), que deu à narrativa sobre a vida de Muhamad o formato tradicional geralmente aceito até hoje, caracterizado por uma aura sagrada e honorável. Já na segunda vertente, o hadith, a palma cabe com todos os méritos a Muslim (m. 875 d.C.) e Al-Bukhári (m. 870 d.C.), compiladores e sistematizadores de grandeza ímpar. Aliás, esse segundo gênero, o hadith, teve enorme fortuna, com a produção de inúmeros tratados ao longo dos séculos, fato esse assaz compreensível caso se leve em conta a sua importância para a própria legislação muçulmana, a shari’a.
Ao contrário do programático convencionalismo das biografias escritas em terras do islã, no Ocidente, conforme seria de se esperar, os diferentes interesses em torno da personalidade do profeta bem como do próprio islã tornam a oferta mais variada, e isso desde os primórdios, na Idade Média, com textos que vão da diatribe mais aberta à proposta de conciliação, passando, também, pelo desejo honesto de compreender essa alteridade.
Moderna, a biografia do inglês Martins Lings (1909-2005), Muhammad, é mais uma tentativa, decerto a mais bem lograda no Ocidente, de tornar legível a biografia e os feitos do homem que lançou um dos maiores desafios que a cristandade teve de enfrentar. Convertido ao islã, Lings, cujo nome árabe era Abu Bakr Siraj Ad-Din, escreve um texto cuja raridade está justamente num hábil cruzamento a que poucos se arriscam: seu relato, por um aparte, utiliza com abundância, generosidade e respeito as fontes tradicionais, sem se deixar envolver por modismos críticos aplicáveis ao caso; de outro, não abre mão do rigor de explanação, com notas, remissões e citações constantes, que conferem um cunho de legitimidade acadêmica ao seu trabalho.O resultado é um texto escorreito, cuja fluência se lê com agrado, e aderente ao ponto de vista das fontes, plenamente justificada pela conversão do autor,muçulmano devoto. Essa adesão se faz de maneira bastante sutil,com recursos poéticos na medida certa, sendo possível citar como exemplo todos os relatos sobre eventos por assim dizer sobrenaturais, os quais, recolhidos nas fontes primitivas onde se encontram descritos, são reproduzidos com tal habilidade pelo autor que o leitor passa ao largo de sua “cumplicidade”, diga-se assim, com o biografado.
Enfim, um arabista não poderia ainda deixar de ressaltar, ao lado da qualidade material da edição, os cuidados com a transcrição dos nomes árabes, o que é inusual em muitas obras similares. Sem temer o risco de causar estranhamento no leitor, a edição não hesita em lançar mão de diacríticos nas letras latinas a fim de ficar mais próxima dos sons do original. Assim, o leitor não deve surpreender-se ao encontrar, logo na capa, a palavra Muhammad do título com um pingo sob o “h” para transcrever um fonema fricativo laringal surdo que existe em poucas línguas além do árabe.