quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Revolta do Malês de 1835


Para  quebrar um pouco a hegemonia de grandes estudioso aqui no blog, eu estou postando esse artigo que originalmente foi escrito como um trabalho para a disciplina de História do Brasil II. Tento neste artigo correlacionar a revolta escrava com uma situação peculiar ao período histórico que aqueles escravos viveram, ou seja, a chamada era das "Jihad's Nacionais", que perduraram por todo o século XIX em boa parte do mundo islâmico e foi ocasionada principalmente pelo enfraquecimento do poder otomano, a sequente perda de territórios para as potências européias, destacadamente Inglaterra e França e o crescimento demografico de comunidades islâmicas, principalmente no Extremo Oriente (notadamente a crição de Estados Muçulmanos apoiados pela irmandade naqshbandi na China).



A Revolta dos Malês de 1835: O Episódio brasileiro na era das Jihad’s


Por Radamés Rodrigues *
O Presente artigo pretende analisar a revolta dos malês como uma extensão das “jihad’s” empregadas no Sudão Central por reformadores muçulmanos como Usman Dan Fódio, além de analisar a origem étnica e cultural desses escravos para que se possa compreender como uma revolta de caráter tão particular transformou-se numa das maiores revoltas escravas das Américas.


A Revolta dos Malês.

Na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835, uma patrulha de milicianos abordaram o cidadão Domingos Marinho de Sá, que se encontrava na janela de sua residência, um sobrado de dois andares na ladeira da praça[1], em Salvador, Bahia. No sobrado havia também estabelecido residência o senhor Manoel Calafate, um dos lideres da revolta. No sótão dessa mesma residência um grupo de escravos, comemoravam uma celebração muçulmana referente ao ramadã – o mês sagrado do calendário muçulmano – tal celebração era a Laylat al-Qadr ou a Noite da gloria – uma das dez ultimas noites do mês de Ramada, simboliza o inicio da revelação do alcorão –  além de acertarem os últimos preparativos para o que ficaria conhecida na história do Brasil como a Revolta dos Mâles.
Esses manifestantes saíram armados com paus e espadas quando perceberam que a policia estava no local, deflagrando o primeiro confronto dessa revolta que assolaria grande parte do perímetro urbano de Salvador.
A primeira vista, este fato parece pouco importante, dado que revoltas e rebeliões escravas ocorriam com certa freqüência e com características bastante peculiares. Porém, um dos dados que mais impressiona é o apontado por João José Reis, quanto ao numero de manifestantes, segundo ele, os 600 manifestantes identificados na época pelas autoridades nos dias atuais representaria algo em torno de 24 mil pessoas[2]. José Reis continua em seu livro dizendo:

Centenas de africanos participaram, cerca de 70 morreram e mais de 500, numa estimativa conservadora, foram depois punidos com penas de morte, prisão, açoites e deportações. Se uma rebelião das mesmas proporções acontecesse hoje(1985) em Salvador, com seus 1 milhão e 500 mil habitantes, resultaria na punição de cerca de 12.000 pessoas.[3]

Salvador, Bahia em meados do século XIX.
Esta pequena passagem da uma idéia do que foi o conflito, mas é preciso entender a sua gênese, e para isto, precisamos saber quem foram os Malês. Podemos por descuido pensarmos que os malês eram um grupo homogêneo, porém, esta linha de pensamento é assaz errônea, tendo em vista a heterogeneidade da própria sociedade baiana. A verdade é que esses escravos vinham de grupos étnicos tão distintos quanto os ewes, os jeje, os iorubanos (aqui conhecidos como nagôs) e outros povos provenientes da Senegâmbia além do povo hauçás.
Esses povos vinham de uma faixa de terra conhecida como Sudão Central ou como os árabes a chamavam Bilad al Sudan, onde importantes estados muçulmanos se estabeleceram a partir do século XV, e no século seguinte os povos do Sudão Central viram o auge do reino Kanem-Bornu, principalmente sob o comando de Idris Aloma que o governou de 1570 até 1619[4]. O reino de Bornu, também, irá desempenhar papel significante na manutenção da ordem entre as nações hauçás que entravam constantemente em conflito. Sob o poder que Bornu impunha a região, havia uma certa proteção contra o mercado escravista, Paul Lovejoy nos mostra que: “Somente no final do século XVIII os escravos foram enviados dessa área para a Costa da Guiné onde embarcariam em direção as Américas, já então, em numero relativamente pequeno.”[5]
Podemos então concluir que os escravos que participaram do levante dos Malês, chegaram ao Brasil já em meados do século XVIII, coincidindo com as jihad’s que os reformadores islâmicos empregaram no Sudão a partir do final do século XVIII. Também é importante ter em mente que enquanto a influencia islâmica se propagava no Sudão, os escravos islamizados continuavam essa tendência nas ruas de Salvador.
O Próprio João José Reis aponta este ímpeto de crescimento que o Islã adquiriu aqui nas primeiras décadas do século XIX. Reis afirma que: “A rebelião aconteceu num momento de expansão do Islã entre os africanos que viviam na Bahia.”[6]. Tal afirmação pode soar um tanto estranha se tratando do Brasil, um país que tem uma distancia cultural acentuada em relação à tradição árabe – islâmica, mas Gilberto Freire, em seu clássico Casa Grande e Senzala, ao falar sobre os sudaneses e sua importância na propagação do Islamismo cita que:

Notou o Abade Étienne que o Islamismo ramificou-se no Brasil em seita poderosa, florescendo no escuro das senzalas. Que da África vieram mestres e pregadores a fim de ensinarem a ler no árabe os livros do Alcorão. Que aqui funcionaram escolas e casas de oração maometanas.[7]

Podemos notar quão arraigado estava o islamismo entre os africanos e como era possível perceber em uma rápida passagem pelo centro de Salvador, escravos se comunicando em árabe, ensinando religião a outros. Isto se dava, também pela mobilidade que os escravos tinham e seu livre transito pelas ruas, principalmente os “negros de ganho”, modalidade de escravatura, onde o escravo tinha a liberdade de sair durante o dia para vender determinada mercadoria ou serviço, tendo que retornar ao anoitecer e ceder parte dos ganhos ao seu senhor.
Outro precedente foi o uso da escrita, sob este aspecto Freyre também se manifesta, apontando o caráter erudito dos escravos frente à aguda ignorância nas quais viviam a maioria dos senhores brancos. Freyre afirma que: “È que nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior numero de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas-grandes.”[8]
O fato é que a própria estrutura de propagação do Islamismo no Sudão Central já nos remete a tal situação. Não há em muitos casos uma tradição literária entre esses povos, logo com a expansão do islã, e seus princípios – como a obrigatoriedade na ritualística muçulmana de se recitar capítulos do alcorão durante as orações – nota-se o grau de influencia realizado pelo islã, na tradição cultural dos povos sudaneses. Podemos notar o impacto da penetração muçulmana na cultura desses povos, a partir do que nos traz Francis Robinson:

O que resta da civilização islâmica, especifica do Sudão, reflecte o papel dos ulamas e do islão em geral na sua configuração. Ali persiste o árabe, língua que os muçulmanos introduziram na região e que foi a primeira que os Sudaneses aprenderam a ler e a escrever. O árabe foi a linguagem da administração, do ensino, da correspondência e da história; e teve também uma grande influencia nas línguas indígenas, especialmente o haúça. O árabe é a língua em que nos chegou os estudos dos eruditos sudaneses [...][9]

Página do Alcorão, em árabe Al Qur'an Al Karim
Isto mostra que o grau de desenvolvimento intelectual entre os escravos era superior ao da maioria dos senhores brancos que muitas vezes precisavam apelar ao capelão ou a um escrivão para redigir uma simples carta. Esta , talvez, tenha sido a maior vantagem dos malês, sob os senhores brancos. É certo que o domínio da escrita ajudou a colocar em pratica os planos dos revoltosos, algo bastante ambicioso, a tomada de Salvador, a morte dos senhores brancos, além de rumarem até o recôncavo para se unirem aos seus irmãos escravos e enfim formar um califado.
Outro importante aspecto é a figura do alufá ou mestre, estes foram os grandes organizadores da revolta, homens com conhecimentos sobre a religião e que atuavam como conselheiros, no contexto da revolta, um dos personagens mais conhecidos era o idoso Pacifico Licutan ou seu nome islâmico Bilãl, um estimado alufá que estava preso, não por suspeitas de conspiração, mas por dividas referentes ao seu antigo senhor. Tal peculiaridade, unida ao fato de que os malês portavam junto a eles amuletos onde haviam inscrições em árabe, passagens do sagrado alcorão e rezas, – pedindo  proteção contra os males desta terra e da outra – mostra que esses muçulmanos eram adeptos da corrente sufista, uma vertente do Islã que era extremamente popular, além de  predominante no Magreb – compreende as regiões do Norte da África – a esse respeito, José Antônio Teófilo Cairus nos revela que: “No Sudão, as antigas irmandades Qadiria e Shadilia foram assimiladas pelos clãs locais. O relacionamento entre o sheykh e seus seguidores era direto e pessoal, sem qualquer outra organização ou procedimento mais elaborado.”[10]
A tradição sufista, extremamente arraigada no principio de obediência ao murshid – mestre – vai ser a via mais viável para que estes rebeldes possam se organizar, tendo também em vista que o próprio Usman Dan Fódio foi mestre sufista da tradição Qadiria[11].
Shehu Usman dan Fodio, 1754–1817
Este que fora sem duvida a maior personalidade das jihades na África, Shehu Usman Dan Fódio (1754 – 1817) iniciou uma campanha de reforma moral contra o pseudo-islamismo do rei de Gobir. Homem letrado e considerado alim – erudito – Xeque Usman instruiu-se com o melhor da erudição produzida no mundo muçulmano sem ter abandonado o Sudão, foi discípulo de El-Hadj Djibril e empregou uma guerra santa contra o que ele dizia ser o paganismo. Depois de uma serie de batalhas Xeque Usman vai finalmente em 1809 fundar o Califado de Sokoto.
Estas conexões entre os movimentos jihadistas que brotaram pelos quatro cantos do dar al- salaam – as terras muçulmanas – e os escravos islamizados da Bahia pode ser subsidiada por um dado apontado por Alberto da Costa e Silva. Segundo ele durante todo o século XVI os europeus levaram da costa Atlântica por volta de 1.868.000 escravos[12], muitos deles espólios de guerra que eram trocados por armas e cavalos ou outras mercadorias, quando não vendidos a baixo preço[13].
A investida dos malês durou toda a madrugada daquela noite de 25 de janeiro e só foi ser contida no Quartel em Água de Meninos, onde a cavalaria esmagou o levante, porém, o plano dos malês realmente consistia em atacar o Quartel e de lá rumar em favor dos escravos do Recôncavo Baiano. Seus planos foram então barrados pelas forças de cavalaria que se encontravam no local e impuseram pesadas baixas aos rebeldes, sem levar em consideração os que se atiraram ao mar para tentar escapar a nado e acabaram por se afogar.
Se do ponto de vista militar a revolta foi mal-sucedida, ela não deixou a desejar em organização. A estrutura de aprendizagem que esta diretamente vinculada aos esforços de propagação da religião pelos malês, propiciou um ambiente intelectual favorável ao ensino não só da cultura religiosa, mas da escrita, que era fundamental para a profissão de fé e se manifesta sutilmente na confecção dos amuletos utilizados pelos próprios malês. Ao contrario do que se possa pensar, não eram somente os eruditos no árabe que os confeccionava, mas também os novos aprendizes o que constituía um meio pedagógico dinâmico.[14]
As senzalas rapidamente se converteram em madrassas, – escolas corânicas – mas não somente nisto, os malês se reuniam para as orações diárias e também para celebrações religiosas. As festividades tinham como palco muitas vezes refeições coletivas como o ifhtar – refeição de quebra do jejum no mês de Ramada – entre outras.  João José Reis descreve outra cena do cotidiano dos muçulmanos soteropolitanos, reunidos para congregarem:

Era também à mesa que os malês festejavam suas principais datas religiosas. Destas, pudemos identificar positivamente o Lailat al-Miraj (a ascensão do profeta Maomé ao céu), que teve lugar no final de novembro de 1834, [...] Naquele ano, o dia 26 de Rajab (sétimo mês do calendário islâmico), data da tradicional celebração, caiu exatamente num sábado, 29 de novembro.[15]
 
Podemos então observar que em tais ocasiões, os integrantes do bloco conhecido como malês estavam reunidos. Possivelmente planejando, ou simplesmente congregando em comunidade, e ou, elevando suas preces para o estabelecimento de um califado na Bahia.
Concluímos que o Levante dos Malês, é um fato singular, não somente para que se possa entender mais sobre a escravidão, mas também, e principalmente para que possamos compreender a multi-etnicidade dos escravos e a consciência dos seus anseios e projetos. Este esforço de percepção é importante para que não entremos em discussões errôneas acerca da passividade com que os escravos viam à sua própria condição social. É também de suma importância, percebermos através de pequenas cenas do cotidiano, como, aqueles revoltosos tombados a frente do Quartel de Água de Meninos, tinham uma conexão e por conseqüência uma proximidade com os problemas e paradigmas que enfrentavam os muçulmanos que vivenciaram o reformismo de suas sociedades durante todo o século XIX.

Bibliografia:

CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Rio de Janeiro, 2002. 223 p. disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDetails.aspx?IDFile=149276 . Acessado em: 14/05/2009.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 43.ed Rio de Janeiro: Record, 2001.

KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. 3. ed. rev. e atual Mira-Sintra: Europa-América, 1999.

LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P.137.

REIS, João José. A revolta dos malês em 1835. disponível em: http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf. Acessado em 18/05/2009.

ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996.

SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 2002.



 * Graduado em História pela Universidade do Extremo Sul  Catarinense.
[1] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. p 91.
[2] REIS, João José. A revolta dos malês em 1835. disponível em: http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/a-revolta-dos-males.pdf . Acessado em: 18/05/2009.
[3] Ibidem. P.7.
[4] ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996. P.97.
[5] LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. P.126.
[6] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P.137.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil - 1. 43.ed Rio de Janeiro: Record, 2001. P.367.
[8] Idem. P.357.
[9] ROBINSON, Francis. O mundo islamita : esplendor de uma fé. Madrid: Del Prado, 1996. P.99.
[10] CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Rio de Janeiro, 2002. 223 p. disponível em: http://www.cipedya.com/web/FileDetails.aspx?IDFile=149276 . Acessado em: 14/05/2009.
[11] KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. 3. ed. rev. e atual Mira-Sintra: Europa-América, 1999. P. 14.

[12] SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Biblioteca Nacional, Dep. Nacional do Livro, 2002. P. 503.
[13] Idem. P.514.
[14] REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês (1835). Editora brasiliense,1986. P. 129.
[15] Idem. P.132.
 

Um comentário:

  1. Gostaria que postasse uma um texto rico, prático e pequeno. Por que desse jeito quando terminar de ler a turma vai fazer: HAM??!! O que foi??

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